domingo, 4 de novembro de 2012

Eu tenho um mestrado, tu tens um doc, ele está em pós-doc...

Em dez anos, duplicou em Portugal o número de pessoas com ensino superior e triplicou o número de investigadores, de produção científica, de patentes internacionais e o esforço de investigação das empresas. 


Beatriz não para. De bata branca, corre de um lado para o outro, faz passagens de modelos entre as bancadas, mete frascos no frigorífico. A ida ao laboratório é, para uma criança de 6 anos, uma aventura. Já para os pais, Célia Romão e Carlos Silva, aquele foi um dia de grande expectativa - iam conhecer a equipa que, quatro anos antes, nos bastidores, tinha conseguido salvar a vida da filha. Tinha 15 meses e "andava há muitos dias rabugenta mas era a altura dos dentes", lembra a mãe. Só quando repararam nas "manchinhas" que lhe nasciam nas pernas e nos braços é que a levaram ao médico. Do centro de saúde de Mafra, onde estavam de passagem, seguiram, com guia de urgência, para o hospital. Ficou sete meses internada no Amadora-Sintra, até ser transferida para o Instituto Português de Oncologia (IPO), onde um transplante de medula através de uma técnica inovadora lhe salvaria a vida.
Não foi fácil fazer o diagnóstico. A criança era muito atípica, repetiam os médicos. Beatriz padecia de "síndroma hemafagocítico" (o corpo destruía o sangue que produzia). Estava anémica, com o fígado no limite e fibroses que impediam a regeneração da medula; a quimioterapia não fazia efeito, o sangue que recebia por transfusão era automaticamente destruído. O cenário revelava-se tenebroso e os pais chegaram a ver os médicos baixar os braços. Quando Manuel Abecasis, do IPO, disse a Célia e Carlos que Beatriz era candidata a uma nova técnica, não hesitaram. Foi operada a 2 de março de 2008, recebendo medula do irmão Bernardo (então com 3 anos) e células do pai. Passou mês e meio sob observação e regressou a casa a tempo de festejar os dois anos de uma vida até então incerta. Célia aguentou emocionalmente a família. Carlos assumiu o lado racional, o conhecimento pesquisado e armazenado. A informação que não lhe chegou na altura foi que, por trás da cura da filha mais nova, estava uma dupla de estudantes do Instituto Superior Técnico (IST) que não tinham sequer 25 anos.

De incerteza em incerteza...

Francisco dos Santos e Pedro Andrade têm hoje 29 anos, doutoramento concluído e uma start up nas mãos. A Cell2B, como lhe chamaram, deverá começar a comercializar uma técnica capaz de fintar o problema da rejeição de transplantes, no início de 2013. Foi do seu projeto de doutoramento em bioengenharia, uma colaboração entre o IST e o IPO, que nasceu o tratamento que salvou a vida a Beatriz e a outras seis pessoas.
Há vezes em que os investigadores conseguem ultrapassar as dificuldades e passam do conhecimento teórico à prática. Nem sempre é assim tão fácil. Para um projeto de investigação chegar a ter aplicabilidade, são precisos muitos anos, muita gente a investigar, a desbravar caminhos. Tudo aquilo "em que mexemos teve muita investigação por trás. Um computador, uma câmara de filmar, um medicamento, as vacinas que as nossas crianças tomam", explica Vasco Branco. Aos 31 anos, tem uma tese de doutoramento por entregar. A sua investigação em toxicologia não deu aquele passo capaz de o pôr na ribalta. Não tem contrato, nem empresa... só angústias: a sua bolsa terminou em maio e tem uma filha para criar. Até arranjar emprego (ou nova bolsa), vive de poupanças e dos ¤980 que Marta, sua companheira e também doutoranda, recebe da Fundação para a Ciência e Tecnologia.
Vasco queria dar aulas e seguir com a sua investigação em toxicologia. Mas o novo Estatuto da Carreira Docente já não lhe permite lecionar em licenciaturas; o orçamento para investigação, a crescer desde os anos 70, encontra-se emaranhado nas teias da crise. Para as centenas de "contratos-ciência" à espera de renovação, há apenas 80 vagas. Vasco e Marta pagam uma renda simpática (cortesia do dono, familiar). E a filha anda numa Instituição Particular de Solidariedade Social, que lhes reduziu a mensalidade para um terço quando a bolsa de Vasco chegou ao fim. É preciso estômago para se fazer vida na investigação, para se "ir de bolsa em bolsa, completar um doutoramento, a seguir um pós-doutoramento e depois o pós do pós do pós-doutoramento...". Marta tem 35 anos e há 10 que vive assim.
Não têm direito a subsídio de desemprego, 13.º mês, subsídio de férias, o subsídio de doença só é ativado após 30 dias e apenas para aqueles que tenham aderido ao seguro social voluntário (equiparando-se, em termos de vencimento, a um trabalhador que recebe o salário mínimo, com as consequências que isso acarreta, em termos de reforma). Os bolseiros, ao contrário de muitos outros portugueses, pedem para pagar IRS, como forma de ver reconhecido que os "investigadores também são trabalhadores". A Associação dos Bolseiros de Investigação Científica não se cansa de protestar para ter acesso aos direitos de todos os trabalhadores mas estes estão-lhes vedados.

A qualificação dá emprego

Há mais de um milhão de pessoas com ensino superior, em Portugal. E como Francisco, Pedro, Vasco e Marta há milhares de investigadores a tirar mestrado, doutoramento e pós-doutoramentos (só financiados pela Fundação para a Ciência e Tecnologia são quase 11 mil). Há os que o fazem a tempo inteiro, os que acumulam a investigação com uma profissão, aqueles que vão estudar para fugir ao desemprego e aqueloutros que, após muita investigação, decidem mudar de vida.
Maria Manuel Mota tem 39 anos e é chefe de equipa da Malária, no Instituto de Medicina Molecular. Tirou o doutoramento na University College, em Londres, e dos seus 29 colegas, apenas dois seguiram o que ela chama de percurso linear (doutoramento, pós-doutoramento, carreira de investigação, docência...). Ela é um deles. Depois do doutoramento no Reino Unido e do pós-doc nos EUA, é, hoje, também, professora associada da Faculdade de Medicina da Universidade de Lisboa. Tem um contrato de cinco anos com o IMM, renováveis, mas não "uma carreira", já que nem para ela, com um longo currículo de investigação em Portugal e no estrangeiro, muitos papers publicados nas melhores revistas da especialidade, o emprego está assegurado - ficar sem trabalho e emigrar é uma possibilidade sempre em cima da mesa, no mundo da investigação.

Contudo os números mostram que os que estudaram mais são menos atingidos pelo desemprego - entre os 576 mil desempregados registados em dezembro de 2011, 89,3% não tinham concluído o ensino superior. E os números provam que, quando um licenciado vai para o desemprego, passa lá menos tempo. Um diplomado tem, portanto, mais hipóteses de encontrar emprego e de o manter.
Há cursos com maior empregabilidade que outros. Medicina continua a dar mais segurança do que Economia ou Gestão, por exemplo. Mas o curso que se tira, e onde se tira, também faz a diferença. Um jovem pode sair de Economia para o desemprego (19,8% dos desempregados andam à procura do primeiro emprego) ou ter à sua espera várias propostas de trabalho. Já um jovem médico vai para internato, com a vida organizada: um contrato, um ordenado e uma perspetiva de vida pela frente.

Sorte também é precisa

Inês Carvalho e Silva especializou-se em Medicina Geral e Familiar e está colocada num centro de saúde do centro do País. Lançou-se para o mestrado e o doutoramento por puro interesse pela ciência. Porque gosta de estudar, de saber. Filha e sobrinha de uma geração de cinco irmãos, todos eles doutorados, sempre recebeu o testemunho de "vamos estudar, vamos formar-nos o mais possível", porque isso é que era normal.
A sua irmã Leonor recebeu a mesma herança familiar. Licenciada em Economia, decidiu voltar a estudar para fugir ao desemprego. Há dez anos, entrou para a faculdade com uma média de 16, apesar de o curso que queria só exigir dez. No final, candidatou-se a um jogo de estratégia promovido por uma multinacional, ganhou, fez um estágio profissional e foi convidada a ficar. A vida corria-lhe bem até que a convidaram a regressar a Coimbra, para junto da família. Lançou-se de armas e bagagens, mas acabou... no desemprego. A experiência, as médias e o prémio não lhe têm valido de muito. "Se calhar, tenho formação a mais. Às vezes preferia que me perguntassem: 'Não te importas de receber menos e trabalhar?'. Eu diria: 'Claro que não me importo!'. O que eu queria era estar a fazer alguma coisa", reflete.
No último ano, tem ocupado o tempo a treinar equipas de basquete no "seu" Olivais Futebol Clube, em regime de voluntariado. Vai voltar a estudar, especializar-se em gestão financeira e fiscal de empresas (cortesia dos pais), por acreditar que esse é um caminho que a levará de regresso ao mercado de trabalho. Ou, então, a outro lado qualquer. "Eu ainda estou a tentar apostar na minha terra, mas está muito difícil... a opção é mesmo globalizarmo-nos", conclui.

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