"Há uma frase constantemente presente no diálogo das pessoas daqui",
conta Alberto Sousa. "Dizem: se tivermos que comer só caldo, vamos
comer, porque já fomos habituados a isso. Mas para os nossos filhos e
netos, vai ser muito difícil". Este antigo trabalhador têxtil da vila de
Pevidém, às portas de Guimarães e um dos núcleos centrais do Vale do
Ave industrial, passou ali a vida inteira. Soube o que foram os tempos
de fome nesta região, que se estende aos concelhos vizinhos como Santo
Tirso e Famalicão, ou o menos industrializado Fafe. Por ali vê-se a
crise a tirar aos operários a capacidade que tiveram de melhorar as
vidas nas últimas décadas.
Como ele, muitos outros antigos operários temem pelo que aí vem. Não
falta quem faça paralelismos entre o momento por que hoje passam e
outras épocas históricas de crise no Vale do Ave. "Isto é uma frase
frequentíssima aqui em Pevidém", garante Sousa.
O investigador
do Instituto Paulo Freire em Portugal, Francisco Neves, reforça: "Para
muitas pessoas, esta ligação é real". Chegou a Pevidém há quase dois
anos para estudar a Marcha da Fome, uma manifestação ali ocorrida em
1940, no tempo em que o Estado Novo e a II Guerra Mundial impuseram o
racionamento e um período de escassez alimentar, mas acabou por
descobrir paralelismos com a crise de hoje.
"Comam caldo"
"Há
uma aproximação ao momento actual. As pessoas sentem a crise e falam
muito nesse movimento do passado como um exemplo do que poderão ter que
voltar a fazer", sustenta o académico. Também por isso, ao livro que
apresentou ontem, baseado no trabalho de investigação sobre a Marcha da
Fome, acrescentou um subtítulo revelador "Memórias de um passado na
inquietude do agora".
Por ali lembra-se o tempo em que as
crianças pediam aos pais uma côdea de pão e a resposta era quase sempre
"Comam caldo". O pão era caro e, acima de tudo, escasso. Essa referência
já tinha sido feita num volume anterior de uma colecção que o Instituto
Paulo Freire está a fazer para a Guimarães 2012 (ver texto ao lado),
mas é aqui enfatizada, porque a época da Marcha da Fome de Pevidém
coincide com o maior período de escassez na região.
Desde então, a
vida dos operários de Pevidém e do vale do Ave melhorou muito, mesmo
que a indústria têxtil tenha passado por crises sucessivas desde os anos
1980. Mas hoje "há uma regressão muito acentuada" das condições em que
as famílias se encontram, avalia António Ribeiro, antigo dirigente
sindical e uma das pessoas que foi entrevistada para a realização do
livro.
Apesar dos paralelismos que os operários e antigos
operários da têxtil traçam entre a fome na época da II Guerra e o que
acontece hoje, Francisco Neves é cuidadoso. O investigador estabelece
por isso diferenças, mesmo as mais óbvias. "Em termos simbólicos" a
população do coração da indústria têxtil no Norte do país pode fazer
esse paralelismo, mas o contexto é hoje completamente diferente,
sublinha. Desde logo porque a Europa não passa por uma guerra
convencional nem o país vive debaixo de uma ditadura.
À portas das padarias
Na
época de fome em que aconteceu a marcha, o salário de um operário era
de 3 escudos e 50 centavos (cerca de 1,75 cêntimos de euro). Além do
curto vencimento, os trabalhadores da indústria tinham ainda que viver
com o racionamento imposto pelo governo. Esse facto levava as pessoas a
passarem noites inteiras à portas das padarias à espera de comprar o pão
que não chegava para todos. Algo que acontecia com frequência.
O
irmão de Alberto Sousa - hoje demasiado doente para poder ser
entrevistado - esteve em várias dessas filas. A fome continuada levou a
que, quase uma década depois, três elementos da família tenham tido
tuberculose e vários outros problemas de saúde. Manuel Sousa foi também
uma das crianças que, com dez anos de idade, encabeçava a marcha que
saiu de Pevidém em direcção à cidade de Guimarães, exigindo pão. A este
protesto, foram-se juntando ao longo do caminho mais trabalhadores da
indústria têxtil, vindos de Riba D"Ave, Campelos ou Serzedelo,
localidades vizinhas com os mesmos problemas.
Estávamos em 8 de Maio de 1940 e o destino final da marcha era a Câmara
de Guimarães, onde chegaram perto de 2000 pessoas, segundo os relatos
recolhidos para o livro. Os investigadores tiveram dificuldades em
encontrar relatos da marcha. Por isso, a investigação baseia-se
sobretudo em testemunhos. Nos jornais locais, apenas havia referências
as protestos no Sul do país promovidos por "desordeiros comunizantes",
recorda Francisco Neves. Sobre Guimarães, nem uma palavra. O único
artigo da época surge no então clandestino "Avante", em que se refere o
protesto como parte das lutas de 8 e 9 de Maio, que tiveram reflexos
noutros pontos do país como Alhandra, Póvoa de Santa Iria ou Sacavém e,
no Norte, em Pevidém. "Percebe-se assim que foi um protesto organizado a
nível nacional pelo PCP", descreve Francisco Neves.António Ribeiro
tinha apenas 6 anos nessa altura, mas nos anos seguintes tornou-se
dirigente do partido na clandestinidade. Cruzou-se com alguns dos
trabalhadores que integraram o protesto de 1940 e confirmou a
importância do PCP no protesto. Foi assim também que descobriu que a
mobilização devia também ter chegado aos operários das empresas
industriais que então existiam no centro de Guimarães. Mas, na cidade, a
operação falhou e apenas os homens e mulheres de Pevidém chegaram à
Câmara, onde mostraram a razão do seu protesto: "Temos fome, não podemos
trabalhar".
Ano e meio de investigação
O livro que no
sábado foi apresentado é o resultado de mais de um ano e meio de
investigação e de dezenas de entrevistas na freguesia. Com poucas fontes
documentais às quais recorrer para fazer este trabalho, os
investigadores do Instituto Paulo Freire de Portugal foram conhecer as
recordações de quem viveu o protestos e de familiares de antigos
operários que também participaram na marcha.
Para o estudo foram
ouvidos três participantes no protesto ainda sobreviventes - dois dos
quais entretanto falecidos -, bem como outros operários e antigos
operários do têxtil naquela freguesia, que guardavam na família
histórias desse tempo. "As pessoas morreram, mas as memórias ficam
guardadas neste livro", valoriza Francisco Neves, investigador que
liderou este trabalho.
O estudo da Marcha da Fome de Pevidém faz
parte de um trabalho mais alargado que o Instituto Paulo Freire tem
realizado nos últimos dois anos no concelho de Guimarães, a convite da
Capital Europeia da Cultura.
O projecto "Raízes" já deu origem a
outros dois livros antes deste. No mês passado foi lançado "Ó mãe,
deia-nos pão", obra em que faz um retrato da pobreza no concelho ao
longo do século XX e também nos nossos dias. A primeira publicação teve
as memórias da indústria e as consequências da crise na região,
sobretudo no sector têxtil, e tinha como título "Quando eu nasci aquela
fábrica já ali estava".
Nos próximos meses serão ainda lançados
duas outras obras resultantes deste projecto de investigação, a primeira
sobre Migrações e a segunda intitulada "Fragmentos de cultura".
O
último livro da série encomendada pela Guimarães 2012 será um retrato
da cultura popular vimaranense, partindo de realidades mais conhecidas,
como artesanato, trajes e culinárias, mas dando a conhecer manifestações
mais ocultas, como bruxarias, superstições e rituais associados à
puberdade e ao casamento.
Os cinco volumes respondem a uma
"urgência de preservar a memória" encontrada pela equipa de
investigadores ao longo do seu trabalho, convivendo com pessoas de 80 ou
90 anos que têm "vivências muito interessantes", sustenta Luiza
Cortesão, investigadora que coordena o "Raízes". "Não as registar seria
um desperdício muito grande de experiências e saberes".
http://www.publico.pt/Sociedade/no-vale-do-ave-os-operarios-voltam-a-temer-nao-ter-pao-para-dar-aos-filhos-1570012?p=2
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